Entrevista: Finanças Públicas e Sociedade, com o Prof. Dr. Fernando Scaff
Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, Fernando Scaff concedeu uma entrevista para o Procurador do Município de Porto Alegre e Diretor Cultural da APMPA, Renato Ramalho.
Confira abaixo a entrevista:
Por Renato Ramalho¹
O Direito Financeiro se mostra presente em diversas áreas da vida em sociedade. Quando o Poder Público constrói uma escola ou um hospital, restaura uma rodovia, eleva ou diminui um tributo ou cria um programa de combate à pobreza. As normas do Direito Financeiro incidem em todas essas ações.
E, nos últimos anos, a crise fiscal por que passa boa parte dos países, incluindo o Brasil, trouxe ainda mais destaque para os debates relacionados às finanças públicas. Muito se discute, desde os telejornais, passando pelas rodas de investidores, até os bancos acadêmicos, sobre as formas de financiamento do Estado e como ele gasta os recursos públicos.
Sob essa perspectiva, a Associação dos Procuradores do Município de Porto Alegre - APMPA entrevistou um dos maiores estudiosos na área, Fernando Facury Scaff, professor titular de Direito Financeiro da USP, pós-doutor pela Universitá di Pisa, Itália, com livre-docência e doutorado em Direito Econômico e Financeiro pela USP.
O professor Fernando Scaff tem inúmeras obras na área do Direito Financeiro. É colunista do site jurídico Conjur, exerce a função de Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP e é sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.
APMPA: Qual a importância do Direito Financeiro para a sociedade?
O Direito Financeiro é o grande fiador das promessas constitucionais. Sem a análise de quem custeia os benefícios sociais e quem os recebe não se pode falar de Estado Social de Direito, que além de ser democrático, deve também ser republicano, isto é, tratar da isonomia entre os cidadãos. Análises sobre receita, despesa e dívida públicas fazem parte do Direito Financeiro, que também inclui temas importantíssimos como federalismo, orçamento e controle financeiro do Estado.
Desse modo, o estudo do Direito Financeiro, que por muitos anos ficou relegado a um segundo plano nas análises estratégicas dos governos, é de fundamental importância para termos governos mais responsáveis, que permitam uma gestão para as atuais e futuras gerações.
APMPA: Em sua recente obra “Orçamento Republicano e Liberdade Igual”², o senhor se refere aos conceitos de capacidade contributiva e capacidade receptiva. Qual a diferença prática entre eles?
Nessa obra, analiso a questão do uso dos recursos públicos de forma republicana, de modo a dar iguais possibilidades de utilização de suas potencialidades. Capacidade contributiva é um conceito bastante conhecido pelos tributaristas, e diz respeito à possibilidade de contribuir com a arrecadação; capacidade receptiva é seu reverso, isto é, a capacidade de grupos vulneráveis de receber as prestações civilizatórias a serem necessariamente fornecidas pelos governos. Um exemplo pode melhor esclarecer. Seria mais importante a Prefeitura de Porto Alegre criar uma nova linha de ônibus para atender o bairro do Moinhos, ou a periferia da cidade? Qual grupo tem maior necessidade dessa prestação de serviço público, supondo que o bairro do Moinhos já possui suficiente linhas para o atender? Esse é o foco do conceito – permitir que as pessoas mais vulneráveis tenham acesso às prestações civilizatórias do Estado. Isso pode ser estendido a outras searas, como saúde, saneamento, educação e diversos outros. Em São Paulo, por exemplo, seria mais importante criar novos espaços de lazer nos Jardins ou na Vila Carrão? A tônica é a mesma. A combinação entre estas duas capacidades é que nos permite avaliar se o governo está agindo de forma republicana ou não.
APMPA: Com a Constituição de 1988, ampliou-se a competência dos Municípios quanto à execução de serviços públicos. Porém, percebe-se que não houve um aumento proporcional na fonte de custeio dessas despesas. Várias políticas públicas municipais dependem de repasses da União, que tem o poder de traçar as condições a serem observadas pelos Municípios. Podemos dizer que houve uma descentralização dos serviços, mas não uma descentralização dos recursos? Precisamos rever o pacto federativo?
A revisão do pacto federativo é importantíssima e deve considerar que as pessoas moram nos Municípios, sendo o Estado e a União ficções jurídicas relevantes, porém secundárias defronte de sua importância para o bem viver das pessoas.
Deve-se considerar que as receitas transferidas também fazem parte do orçamento municipal, com vantagens, tais como o de receber os valores sem nenhum gasto fiscalizatório, e desvantagens, pois se trata de um recurso sobre o qual o governo local não tem controle, podendo ser alterado pelo ente federado que tem a competência tributária. Isso fica evidenciado pela recente política de desoneração do IPI, adotada pela União, que afetou a arrecadação transferida a Estados e Municípios.
APMPA: Em artigo publicado na Conjur³ , o senhor defende a impossibilidade de cortes na área de educação pela União. Esse entendimento também se aplica aos Municípios?
Exatamente. Os gastos com os direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição são incontingenciáveis além do mínimo. O montante mínimo para educação e saúde estão albergados contra o contingenciamento pelo art. 9º, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal quando se refere às “obrigações constitucionais do ente”. O que estiver no orçamento anual, e for dirigido aos direitos sociais previstos no art. 6º, CF, estão abrigados pela expressão “obrigações legais do ente”, na mesma norma. Não se trata de um ato de vontade do intérprete, sendo o que consta da norma. Isso obriga o administrador a proteger tais direitos de contingenciamentos e cortes, afinal, o orçamento é uma lei, igual à demais, apenas com prazo certo de vigência, pois anual. Um decreto não pode ultrapassar o que a lei determina e excepciona, protegendo de contingenciamentos.
APMPA: Qual sua opinião sobre a Emenda do Teto dos Gastos (EC nº 86/2015) e seus impactos para investimentos em áreas como educação e saúde?
Trata-se de um erro homérico, pois, nos períodos em que o país crescer, os valores percentuais alocados para educação e saúde serão atingidos fortemente pelo abate-teto, o que tornará as populações mais vulneráveis ainda mais desprotegidas. Quem depende de saúde pública para si e sua família, e de educação pública para seus filhos, terá menos recursos disponíveis para isso, enfraquecendo ainda mais os laços sociais e tornando o presente dessas famílias muito pior e comprometendo o futuro de nossa população, que é, ao fim e ao cabo, a maior riqueza de um país.
APMPA: Em tempos de crise fiscal, muito se questiona sobre a necessidade de uma auditoria na dívida pública brasileira. Qual sua opinião a respeito?
Observe-se que há uma diferença entre o que a Constituição determina, que é a auditoria da dívida externa brasileira, e o que se proclama de uma auditoria da dívida pública brasileira. São coisas diferentes, com fundamentos diversos.
No que tange à auditoria da dívida externa brasileira, prevista na Constituição desde 1988, perdemos a hora de fazê-lo. A Constituição obrigava a realização da auditoria da dívida externa logo após a promulgação, e, infelizmente, o Congresso Nacional não adotou a tempo e hora tal iniciativa. Hoje sua importância para fins financeiros e econômicos será muito limitada. Deve ser feita, mas como um instrumento de reposição da verdade, tal como ocorreu com a anistia política. Tal norma foi inserida na Constituição por pressão de um político gaúcho, Leonel Brizola, que apontava a assunção pelo governo militar de muitas dívidas de empresas privadas com bancos estrangeiros. Tal alegação nunca foi provada, embora incontáveis historiadores mencionem sua ocorrência, como faz o jornalista Elio Gaspari em suas obras.
Quanto à auditoria da dívida pública brasileira, entendo que vem sendo feita pelo Banco Central e outros órgãos de controle, como o TCU e o próprio Congresso Nacional. Se está sendo feita adequadamente, é outra história, sobre a qual não tenho condições de opinar.
APMPA: O que pensa sobre programas de renúncia fiscal, como as isenções e os refinanciamentos de dívidas, constantemente adotados pela União, Estados e Municípios?
São coisas diferentes. Renúncias fiscais são instrumentos válidos para o desenvolvimento, em especial para incrementar setores econômicos específicos, importantes para o ente federativo que as concede. Devem ter prazo certo e estabelecer condições para sua fruição e manutenção, sob pena de se transformação em singela doação, o que não é adequado.
Programas de reparcelamento de dívidas fiscais tem outra conotação, pois decorrem, em grande parte, de valores muito altos de multas, que são reduzidos nesses sucessivos parcelamentos. As empresas muitas vezes se refinanciam através do não pagamento de tributos, pois esperam um programa dessa natureza para quitar a dívida de forma parcelada e com redução de multas e, muitas vezes, também de juros. Logo, o uso rotineiro desse expediente por parte dos governos é nocivo, gerando uma espiral de estímulos à inadimplência programada por parte das empresas. O ideal seria que os governos se conscientizassem disso e reduzissem desde logo as multas por inadimplência, de modo que os pagamentos usuais, por dificuldades econômicas, pudessem ser quitados sem mais delongas.
APMPA: Por fim, qual o papel da Advocacia Pública na sustentabilidade das Finanças Públicas?
Importantíssimo, seja no aspecto litigioso, na defesa dos interesses da Fazenda Pública em juízo, seja no âmbito consultivo, que considero ainda mais importante, pois preventivo de problemas que ocorrem usualmente por falta de consulta por parte dos governantes. Estes, muitas vezes, até consultam, mas não escutam – ou não querem escutar – os alertas feitos pelos advogados públicos.
¹Procurador do Município de Porto Alegre. Diretor Cultural da APMPA. Mestre em Direito do Estado pela UFPE. Especialista em Direito Tributário e Administrativo.
²SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual – Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
³SCAFF, Fernando Facury. É proibido proibir: notas sobre o bloqueio de verbas para a educação. Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-14/contas-vista-eproibido-proibir-notas-bloqueio-verbas-educacao